Primeiras reflexões dos 40 anos do golpe de 64
Reportagem de Francisco Bicudo
O mês de março será marcado por uma série de reportagens, publicações especiais, debates, lançamentos de livros e programas de televisão e rádio sobre o golpe militar de 1964, que completa 40 anos no dia 31. Na arena pública de discussões, estarão colocadas questões como as razões do golpe, os principais personagens envolvidos, as atrocidades cometidas em nome da segurança nacional e da caça aos subversivos, as mortes nas câmaras de tortura, a pulverização dos movimentos sindical e estudantil, os ataques às universidades, as relações perigosas com os Estados Unidos e com governos autoritários de outros países da América Latina, a censura à imprensa, a perseguição aos intelectuais e a desmobilização dos agentes culturais, apenas para citar algumas abordagens possíveis.
Sem perder tempo, a revista “Cult”, em edição que acaba de chegar às bancas, é uma das primeiras a apresentar vasto material de reflexão sobre o tema. Ela traz como destaque do mês um dossiê sobre a ditadura. A chamada de capa é “1964 – O golpe da História”. São artigos e entrevistas de que viveu de perto o regime – e, mais do que isso, sofreu com ele –, em um balanço histórico plural e diversificado sobre um dos períodos mais obscuros da história recente do Brasil.
Logo no editorial, a revista afirma que a “o período iniciado em 31 de março de 1964 transformou-se no mais longo colapso da democracia brasileira desde a proclamação da República”. O texto diz que, durante seus 21 anos de duração, o regime suprimiu direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, exterminou seus adversários, prendeu e torturou e calou a imprensa. “Houve uma varredura”, lamenta. E, embora o início de tudo isso tenha se dado há 40 anos, a revista lembra que as conseqüências do golpe são sentidas até hoje, já que duas das áreas mais afetadas pela repressão foram educação e cultura.
A profundidade do movimento
O historiador Boris Fausto, entrevistado por “Cult”, ajuda a compreender os primeiros momentos do golpe – quando, ele mesmo revela, ainda não se sabia muito bem qual seria a profundidade do movimento –, bem como analisa seus desdobramentos e a consolidação do poder de terror do Estado. Fausto lembra que duas grandes perguntas que passavam pela sua cabeça na época eram: eles vão fazer uma limpeza rápida e vamos retomar o quadro institucional? Ou a ditadura vai se aprofundar? “Essa dúvida ficou inteiramente resolvida em 1968. Com o AI-5, ficou claro que se tinha instalado um regime militar autoritário, que tinha vindo para ficar e por muito tempo”.
Na entrevista à revista, o historiador destaca que a ditadura brasileira teve algumas características particulares: o Congresso ficou aberto, havia dois partidos políticos funcionando. Em relação à Argentina, por exemplo, a situação brasileira foi bastante diferente. No entanto, antes que possa ser acusado de atenuar as atrocidades cometidas ou de defender o regime, Fausto faz questão de reafirmar que o que tivemos no Brasil foi, sim, uma ditadura. “Não houve eleições livres, quem ficou com o poder foi a cúpula militar, não houve liberdade de imprensa, houve violência, e a partir de determinado momento, a tortura se tornou instrumento do regime”. Para ele, a grande lição que deve ficar do período é a crença no regime democrático como um valor de fundamental importância. Porque, diz ele, a direita em 64 realmente não acreditava na democracia, mas setores da esquerda também desprezavam a idéia. “Uma das tragédias desse período foi o abandono da crença na democracia e na necessidade de preservar um sistema político”, lamenta.
As razões históricas para o golpe são também analisadas pelo artigo do jornalista Oswaldo Martins. Para ele, Jango parecia governar o mundo da lua. Quando viu o cerco se fechar, resolveu pedir socorro e buscar sustentação nos sindicatos e nos cabos e sargentos, sem a percepção de que o movimento sindical era dominado, em geral, por pelegos, e sem avaliar também as conseqüências de uma possível quebra da hierarquia militar. “No Brasil de quarenta anos atrás, as instituições eram frágeis, os meios de comunicação limitados às classes médias, e a tradição militarista, mais forte do que nunca. Foi, sim, um golpe de Estado – e no melhor estilo republiqueta”, afirma o jornalista. Ela concorda com Boris Fausto, ao lembrar que, entre 1964 e 68, a censura de Estado ainda não havia sido estabelecida, e segmentos culturais como a música de protesto e o teatro de resistência de Augusto Boal podiam gritar à vontade.
Com o AI-5, em 1968, o pau comeu. Também preocupado com a consolidação da democracia, Martins lembra aos “nascidos em 1964, hoje quarentonas e quarentões, que a segurança das instituições que hoje usufruímos é conquista recente”. Para ele, a Constituição de 1988 é a certidão de nascimento da democracia brasileira.
”o mito do milagre econômico”
O mito do “milagre econômico”, uma das facetas cantadas em verso e prosa pelos defensores da ditadura, é avaliado e desmontado pelo jornalista e escritor Vladimir Pomar. Ele afirma que, antes do golpe, estava sendo gestado no Brasil, e pela primeira vez na história nacional, um projeto popular, em oposição a um projeto conservador. A idéia, diz, era desenvolver um mercado de massas, capaz de absorver a produção nacional. Os obstáculos, porém, não eram fáceis de ser superados: em 1963, a inflação anual saltou para 88,4%, contra 42,2% no ano anterior; os investimentos foram reduzidos, o desemprego aumentou, o governo perdeu o controle sobre o déficit público, e a crise ganhou contornos e dimensões políticas. “As armas decidiram a disputa entre os dois projetos, e os militares assumiram o poder”, escreve Pomar. Ele admite: a partir de 1967, a economia brasileira começou a viver o milagre das elevadas taxas de crescimento.
No entanto, em 1973, o país sentiu o primeiro baque, com a crise do petróleo: a balança de pagamentos apresentou déficit de 1,3 bilhão de dólares, os preços subiram 35%. A dívida externa subiu de 12,5 bilhões de dólares (1973) para 74,4 bilhões, em 1982. Razões? Ele explica: “O Brasil aumentou sua dependência em relação aos capitais e tecnologias internacionais. Seu desenvolvimento fiou atrelado aos recursos externos. A renda dos mais ricos cresceu para 65% do total do país, enquanto a dos mais pobres caiu para 12%”. O jornalista termina o seu artigo tentando traçar um paralelo com as opções econômicas feitas pelos recentes governos brasileiros, que fizeram desembarcar no país, com toda a força, pompa e circunstância, o projeto neoliberal. “A história da economia do período militar talvez nos auxilie a entender como certos caminhos, aparentemente mais fáceis e de maior aceitação pelos mercados, podem colocar o país diante de crises e obstáculos ainda maiores”.
Arte e cultura
O dossiê especial publicado pela revista não esquece de abordar a arte e a cultura. O Brasil dos anos 60, afinal, viveu um dos períodos mais profícuos em termos de manifestações artísticas e culturais. Era a época do Teatro Opinião, do Cinema Novo de Glauber Rocha, dos Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Teatro de Arena, do Rei da Vela, dos festivais da canção e das músicas de protesto, da Tropicália e de Geraldo Vandré.
Toda uma geração foi calada pelo golpe. “O cinema brasileiro vem enfrentando o desafio de analisar e expressar na visualidade as contingências e as conseqüências de 1964, que vêm sempre sendo atualizadas em diversos filmes realizados no país. Essa produção indaga: quem somos? Quais situações geraram rupturas políticas? Como se viveu durante a repressão?”, questiona Miguel Chaia, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para ele, o golpe militar de 64 é o espectro hamletiano que constantemente entra em cena, permitindo que o coletivo reflita sobre sua situação histórica. Para Flavio Aguiar, professor da Universidade de São Paulo, a ditadura fracassou ao tentar retirar da cena o principal protagonista da história brasileira: seu povo. “Ele, o ‘povo”, resistiu, resistiu mesmo àquela crítica de esquerda e continuou existindo e aparecendo aqui e ali. . (...) Nas artes e nas letras, ele continuou existindo. (...) Sobreviveu como imagem de resistência. (...) A canalha de 64 não conseguiu. Cercou a praça, quis engaiolar o povo e eliminar seus opositores. Venceu, mas não triunfou. A praça, as letras, as artes, a cultura e de vez em quando, muito de vez em quando, a própria política permanecem assombradas pelo povo”.
Bastidores e a realidade dos porões
A edição especial termina com uma entrevista de Dom Paulo Evaristo Arns, ex-cardeal arcebispo de São Paulo e um dos principais e mais ferrenhos adversários da ditadura militar. Ele não alivia e revela os bastidores e a realidade dos porões e das torturas. Chega inclusive a questionar a Anistia, assinada em 1979. “Foi a solução, mas não é completa. Não podiam ser anistiados aqueles que mataram torturando, porque esse é um crime inafiançável. Quem mata calmamente, friamente, tem de sofrer um processo e tem de sofrer também as conseqüências de seus atos. O Brasil fez a Anistia pela metade, mas nós ficamos contentes porque não houve derramamento de sangue”.
Para quem deseja conhecer a ditadura com mais detalhes, eis aqui um bom ponto de partida. E é só aguardar, pois vem muito mais por aí.
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“A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada” e “A Ditadura Derrotada”, livros do jornalista Elio Gaspari lançados pela editora Companhia das Letras.