ARTIGO

Golpe de 1964, a anatomia de um crime histórico

Atualizada em 30/03/2023 09:24

(*) Ailton Fernandes, professor de História e diretor do SinproSP

Já há muito deveríamos ter colocado na pauta das forças democráticas a ideia de exigir do tribunal de Haia um julgamento sobre os genocídios cometidos pelos governos militares na América Latina nas décadas de 1960, 1970 e 1980, todos eles apoiados pelo imperialismo estadunidense. Os crimes cometidos nesses períodos foram inúmeros, violentos e muitos copiavam da Alemanha nazista o modus operandi de execução. Por essas razões, comemorar o golpe militar no Brasil no dia 31 de março, como querem alguns, seria um insulto à memória histórica, à verdade e à Justiça, algo como comemorar o assassinato de milhares de pessoas que se colocavam contra o regime ditatorial que existia então.

Nesse 01 de abril de 2023, quando o golpe civil militar completa 59 anos, é preciso lembrar que, ao longo de mais de duas décadas, o Estado brasileiro matou, seviciou, torturou milhares de brasileiros e brasileiras. Foram descobertas em vários cemitérios brasileiros covas sem identificação com corpos de pessoas desaparecidas durante esse período obscuro de nossa história. Não por acaso, a impunidade faz com que, mesmo após o término desse período, ainda se pratique nas delegacias brasileiras o aprendizado das torturas da ditadura militar, agora não contra militantes políticos mas, principalmente, contra o povo pobre e preto em sua maioria. Em muitos departamentos estatais de repressão a ditadura mantêm o seu espírito violento e maligno.

O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, por exemplo, se assemelha muito ao assassinato da também carioca, a estilista Zuzu Angel, que apenas queria saber onde estava o corpo do seu filho, Stuart Edgart Angel Jones, um estudante de economia que despareceu sob a tutela do Estado brasileiro. Marielle, por seu lado, defendia as vítimas da violência nas favelas da cidade, incluindo aí famílias de policiais também atingidas por essa violência.

Cumpre destacar ainda que, naquele período de horrores, a violência não era somente física. A censura era a prática de uma violência contra o livre arbítrio e a liberdade de expressão. Jornais, rádios, TVs, revistas, livros, todos os instrumentos de comunicação e formação sofreram cortes nas suas linhas editoriais, no sentido de apenas publicarem aquilo que o regime autoritário permitia. Nas universidades, a ordem era para que elas se calassem frente a tanta violência e os professores e professoras que assim não agiam eram perseguidos e expulsos do país.Mesmo docentes de Ensino médio e Fundamental II, chamados então de colegial e ginásio, sofreram perseguições e atentados.Viu-se, então, a fuga de grande parte da inteligência brasileira, pessoas que foram buscar refúgio em países estrangeiros: músicos, intelectuais, políticos, escritores. Muitos saíram para preservar a sua vida e a sua liberdade de pensamento.

Mas há algo mais que salta os olhos e, ao meu ver, necessitaria de uma atenção especial dos historiadores do período: a ditadura militar brasileira ela não foi apenas violenta, ela foi economicamente incompetente também. É preciso desmascarar o “milagre brasileiro”. 

Antes do golpe de 1964, a dívida externa brasileira era de 12 bilhões de dólares e, ao final da ditadura, ela já atingia a casa dos 100 bilhões de dólares. A dívida somente se estabilizou depois dos governos de FHC e Lula.Fica muito fácil governar indo toda hora, com o pires na mão, buscar recursos financeiros em forma de empréstimo, pois não?!

Em 1977, apenas para pegar um exemplo, um outro grande fantasma aterrorizava os lares brasileiros: a inflação, que naquele ano chegou na casa dos 40% e sem que houvesse uma política salarial que compensasse essa inflação. Era o que os novos movimentos sindicais emergentes, principalmente no ABC paulista e tendo Luis Inácio Lula da Silva como protagonista, chamavam de “Carestia”.Entre 1964 e 1985, o salário mínimo caiu 50% em valores reais, ou seja, já ajustados pela inflação. Foram precisos 30 anos para recuperar o poder salarial dos mais pobres.Houve também períodos de desabastecimento, me lembro perfeitamente eu criança ainda, indo com a minha mãe, em plena madrugada, na fila da padaria perto de casa porque ela só conseguiria um litro de leite, o que era insuficiente para uma família de seis pessoas.

A concentração de renda foi outro exemplo dessa incompetência administrativa. A desigualdade social explodiu de uma maneira absurda, traduzida no crescimento exponencial das favelas em todo o país. Surgiram bairros, como a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, que foram criados como moradia popular, sem no entanto nenhuma estrutura urbana nele, e que começaram a crescer de maneira caótica, com barracos e casas de alvenaria improvisadas.A lógica tributária de que pobres pagam a mesma carga de impostos que os ricos, as vezes até mais, nasceu nesse período e transforma essa arrecadação numa das mais injustas do mundo.

Sim, precisamos de um julgamento em Haia para apenar esses criminosos!

Mas, antes desse julgamento, precisamos que nós mesmos, brasileiras e brasileiros, condenemos esse período. Em nome das memórias, da justiça histórica e da verdade. Para que nunca mais.

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