A doutrinação ideológica não está nas salas de aula
José Ruy Lozano*, no Jornal Folha de São Paulo de 29/10/2021
Ao desprestígio de décadas que a função de professor tem recebido da sociedade brasileira, expresso no aviltamento de seus salários e no declínio das condições de trabalho nas escolas, especialmente as públicas, os últimos anos trouxeram algo novo e perturbador: as reiteradas agressões a docentes por parte de movimentos de direita que lhes impingiram o rótulo de doutrinadores ideológicos.
Desde então, a atuação de outras categorias profissionais, partidarizadas até a medula e comprometidas com o projeto político de turno, fez com que o tal medo da doutrinação de esquerda nas escolas se mostrasse uma piada de mau gosto.
A classe médica nos deu mostras aterradoras de adesão ou submissão ideológica durante a pandemia. Contrariados pela expansão dos cursos de medicina e pela contratação de profissionais cubanos durante governos anteriores, vimos os conselhos da categoria validarem terapias sem comprovação científica. Médicos de diversas especialidades excursionaram pela infectologia recomendando tratamentos "experimentais" com propósitos políticos. Alinhamento ideológico na veia —literalmente. Já é hora de criar o movimento "Médicos Sem Partido"?
Talvez "Hospitais Sem Partido" seja o mais adequado, dada a articulação de alguns deles com as franjas de certos palácios de Brasília. Cabe perguntar: o que mais nos ameaça, um professor falando das injustiças da sociedade brasileira ou uma empresa de saúde que encampa politicamente soluções tidas como convenientes pelos poderosos de plantão e põe em risco a vida de milhares de pessoas?
Quando médicos propuseram um gabinete das sombras e dele participaram, os brasileiros viram o que é de fato o aparelhamento, a partidarização e a ideologização —não em salas de aula, mas em consultórios e alas de atendimento hospitalar.
O comprometimento político, porém, não se restringe à medicina. Em 2019, no Ceará, um motim de policiais pretendeu subjugar o ordenamento institucional e arrancar concessões à força. A partir dele, percebeu-se uma crescente politização das forças policiais em diversos estados. Que danos podem trazer uma aula de geografia que comente a destruição do arco sul da Amazônia pelo avanço da pecuária extensiva, por exemplo, comparada à ideologização progressiva das polícias, que vem dando mostras inquietantes de entusiasmo com ideias e valores antidemocráticos?
Aliás, sobre pecuária e meio ambiente, cabe um parêntese tranquilizador: o grupo denominado "Mães do Agro", formado por mulheres ligadas ao agronegócio, já se apresentou ao Ministério da Educação defendendo que os materiais didáticos apresentem uma visão positiva sobre o setor. Como se vê, o lobby ideológico não vem necessariamente dos professores.
É hora de a sociedade brasileira reconhecer que errou com os educadores, em muitas dimensões, mas particularmente nos últimos tempos, em razão de ataques contínuos à sua integridade profissional, com acusações —essas sim— motivadas politicamente. E que se cobre equilíbrio, isenção e independência de tantos outros setores que têm se prostrado diante dos altares bem financiados do poder.
*Sociólogo e autor de livros didáticos, é membro da Comunidade Reinventando a Educação (coreduc.org)