Ensino superior

Demissões nas universidades particulares atestam conversão acelerada para EaD

Atualizada em 14/07/2020 18:25

Publicado no site da Adusp, em 14/07/2020

“Ensalamento”: o neologismo soa estranho, mas designa uma realidade que as instituições privadas de ensino superior já experimentam há algum tempo e cuja disseminação cada vez maior foi — e será — acelerada pela pandemia da Covid-19.

“O ensalamento consiste em juntar turmas de níveis, de anos e até de cursos diferentes numa única aula. Assim, em vez de dar três aulas para turmas de 50 alunos, você dá uma aula para uma classe de 150 alunos. O que aconteceu agora? A experiência da pandemia mostrou para as escolas que o ensalamento virtual é muito melhor do que o físico, em que há um limite dado pelo tamanho do auditório. No virtual dá para enfiar 250 ou 350 alunos na mesma aula”, explica a 1ª secretária da Diretoria do Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro-SP), Silvia Barbara.

Se o movimento de demissões de professores das instituições de ensino superior (IES) privadas já era rotineiro a cada final de semestre, as circunstâncias provocadas pela pandemia da Covid-19 apontam para a aceleração de um processo de reestruturação que, em tese, levaria vários anos para acontecer, avalia a representante do Sinpro.

Um dos fatores decisivos para essa nova realidade é a publicação da Portaria 2.117, de dezembro de 2019, assinada pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub, que promove uma espécie de “passagem da boiada” na Educação a Distância (EaD) para as IES privadas. A portaria permitiu que as escolas passassem a oferecer “carga horária na modalidade de EaD na organização pedagógica e curricular de seus cursos de graduação presenciais até o limite de 40% da carga horária total do curso”. É o dobro do limite anterior, que era de 20%.

O Ministério da Educação (MEC) entende aula remota como substituto da aula presencial porque alunos e professor estão logados em tempo real. Os alunos podem fazer perguntas e o professor pode propor trabalhos em grupo, apresentar um power point etc. É como se as rotinas da sala de aula fossem reproduzidas com o uso das ferramentas digitais, convertendo a EaD em aula presencial.

“É um processo de reestruturação de gestão das empresas que tem muito a ver com mudanças nas normas pedagógicas. A portaria foi decisiva por permitir os 40% e também por flexibilizar regras de avaliação externa. Tudo isso contribui”, diz Silvia. “As demissões de agora não aconteceriam sem a conivência do MEC e do Conselho Nacional de Educação, um órgão que está recheado de representantes do setor privado”.

EaD “é mais fácil do que imaginávamos”, descobre empresário da educação

A tendência de aprofundar os investimentos nas modalidades EaD ou no chamado “sistema híbrido”, que mescla ensino remoto e presencial, é confirmada pelos próprios empresários do setor, como Gabriel Mário Rodrigues, fundador da Universidade Anhembi Morumbi e presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES). “O ensino a distância vai prevalecer. É mais cômodo, estudar em casa é sempre melhor”, disse Rodrigues à revista Ensino Superior.

“As coisas vão mudar porque a gente percebe que é mais fácil do que imaginávamos. Eu mesmo, agora, sem um assistente, tenho que fazer tudo sozinho. Está engraçado”, considera. O empresário aponta inclusive um novo “problema” para as IES privadas: a destinação de prédios e instalações que ficaram sem uso na pandemia. “Vão sobrar espaços, já estou pensando em como solucionar esse problema que vou ter de imediato”, apontou.

Na avaliação de Rodrigues, “o ensino superior já vinha mudando”, e “o que deve permanecer são as profissões como Direito, Medicina e Engenharia, as demais vão sofrer muitas alterações”. Se antes o diploma era muito importante na vida das famílias, agora “a sociedade caminha para quem tem o conhecimento, independentemente de título”, vaticinou. “Quem inovar vai ganhar o jogo”.

Por sinal, uma das “inovações” da Rede Laureate, à qual a Anhembi Morumbi pertence, foi a utilização de software de inteligência artificial para a correção de provas dissertativas dos alunos, como demonstrou reportagem da Agência Pública.

Já o pró-reitor de educação a distância da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul), Carlos Fernando Araújo Júnior, afirmou, também de acordo com a revista Ensino Superior, que “os professores da sua instituição avançaram em um mês o que ele vem tentando há 8 anos, quando assumiu a pró-reitoria”. Com a suspensão das aulas presenciais, em março, a Unicsul colocou em ação o seu plano de Ensino Remoto Síncrono Emergencial (ERSE). Na avaliação de Araújo, de agora em diante as IES particulares devem aumentar o número de horas de aula a distância. “Agora grande parte vai utilizar os 40% online que a legislação permite. Ou até menos, mas é inegável essa mudança”, proclamou.

Uninove demite professores por meio de pop-up na tela do computador

Araújo não está falando apenas em teoria. No final do primeiro semestre, a Unicsul foi uma das instituições que mais demitiram professores no Brasil. A universidade dispensou cerca de 30% do seu corpo docente, estima o Sinpro, que entrou com ação no Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2) no dia 1º/7 pedindo a suspensão liminar das demissões.

A forma como os professores foram comunicados da dispensa — um pop-up que aparecia na tela do computador quando o docente tentava acessar o sistema — e o número de desligamentos tornaram a Universidade Nove de Julho (Uninove) protagonista de um dos casos de maior repercussão. No último dia 22/6 essa instituição privada demitiu cerca de 500 docentes.

Nesta semana, os professores vão realizar uma assembleia para deliberar sobre a proposta resultante da audiência de conciliação realizada no último dia 9/7 entre o Sinpro e a universidade no TRT-2. O sindicato defendeu a anulação das demissões, alegando que elas foram resultado de uma reestruturação pedagógica e de gestão para favorecer o “ensalamento”, ressaltando que o fato de terem ocorrido em meio à pandemia torna a situação ainda mais cruel. A Uninove, por sua vez, atribuiu as demissões exatamente à crise provocada pela pandemia. Já no início do ano, porém, a instituição, que tem cerca de 150 mil alunos, quis fazer a redução linear da carga horária de todos os professores, aproveitando-se da portaria do MEC.

A Uninove ofereceu plano de saúde até 31/10 e bolsas de estudo integrais aos professores e dependentes até o final de 2021. A partir de 2022, será garantido um desconto de 50% até o final do curso. Três professores portadores de deficiência que haviam entrado em contato com o sindicato serão reintegrados, pois a lei 14.020, de 6/7, veda a dispensa de trabalhadores com deficiência até o final do estado de calamidade pública. A Uninove também deve disponibilizar os seus holerites, uma vez que o acesso às plataformas virtuais foi vedado e muitos docentes demitidos não conseguiram salvar seus comprovantes de pagamento. Também terá que tratar com o Sinpro sobre a eventual reintegração de outros professores, diferenças nas verbas rescisórias e problemas relacionados à carga horária.

Na Universidade São Judas Tadeu, o Sinpro confirmou até o momento 74 demissões em São Paulo, Santos e Guarulhos — número menor do que nos anos anteriores, diz o sindicato. Na Universidade Paulista (Unip), que tem cerca de 220 mil alunos em 65 unidades, ainda não há notícias de dispensas em massa, de acordo com uma professora ouvida pelo Informativo Adusp.

No final do ano passado a Unip demitiu muitos docentes que estavam prestes a se aposentar. No momento, os coordenadores “estão quietinhos”, define a professora. “Como de praxe, a universidade enviou mensagem sobre reajuste de carga horária e em junho foi colocada uma nota no site dos professores dizendo que, devido à pandemia, a universidade tentaria segurar as demissões.”

Para o pessoal administrativo, porém, as coisas foram diferentes, e houve demissões ao longo do semestre. Aos ajudantes de coordenação foi oferecida uma redução de carga horária e de salários para que trabalhassem apenas dois dias por semana de forma remota. Todo o trabalho docente — aulas, provas, avaliações etc. — também é feito remotamente. “Ficamos todos sobrecarregados e estressados”, define a professora.

O Sinpro diz que a consolidação do número de dispensas só será possível após a homologação das demissões.

Sumaré propõe carga horária de uma aula semanal e R$ 1,00 por aluno “ensalado”

“Sempre falávamos que o desemprego estrutural demoraria para chegar entre os professores, mas de repente estamos começando a sentir isso. Não se trata de demitir professores, mas de cortar postos de trabalho”, considera Silvia Barbara, do Sinpro. Para além das demissões, diz, “estamos assistindo a um cenário com perspectiva de piorar muito e de enorme ‘criatividade’ no descumprimento da legislação trabalhista”.

Um dos casos em que essa “criatividade” se revela é o do Centro Universitário Sumaré, “que tem uma longa ficha corrida de descumprimento de legislação”, ressalta Silvia. No final de junho, a instituição propôs que todos os professores tivessem a carga horária do próximo semestre reduzida para uma única aula semanal. Parte das aulas presenciais que o docente dava será convertida em virtual, com o maior “ensalamento” possível, e a escola oferece pagar ao professor o valor da hora-aula mais R$ 1,00 — sim, um real — por aluno “ensalado” na turma.

O Sinpro orientou os professores desde o primeiro momento a recusar, por escrito, a proposta de redução de carga horária. No último dia 7/7, o sindicato realizou uma reunião com o reitor da instituição, Antonio Fernando Soria Barbosa, na qual demandou que a Sumaré anulasse a redução. O mantenedor negou-se a suspender as mudanças, alegando que elas são legais.

Isso não é verdade, considera o Sinpro, para quem a instituição está utilizando indevidamente uma cláusula da convenção coletiva que disciplina a supressão de disciplinas ou turmas por mudança curricular e, por meio desse expediente, promovendo uma mudança na função e na forma de remuneração dos professores, barateando os custos do trabalho e preparando o caminho para demissão com custos menores mais à frente. Como não houve acordo com a direção da Sumaré, o sindicato vai tentar barrar a medida na Justiça do Trabalho.

Outra negociação recente do sindicato envolveu a Rede Laureate, da Laureate Education, um dos maiores grupos privados de educação do mundo. De acordo com o seu site na internet, o grupo possui 875 mil alunos em 25 instituições espalhadas por dez países. No Brasil, são 11 instituições em sete Estados, somando mais de 260 mil alunos. Em São Paulo, além da Anhembi Morumbi, pertencem à rede o Centro Universitário FMU-FIAM-FAAM e a Business School São Paulo.

“O que a Laureate faz cria moda e acaba sendo seguido depois por outros grupos”, define Silvia, do Sinpro-SP. Pelo menos desde 2017 há uma reestruturação em andamento que vem cortando muitos professores e postos de trabalho, com grande número de demitidos todos os semestres.

Em maio, a Laureate fechou um núcleo de EaD, demitindo 120 pessoas. O Sinpro tentou anular as demissões, mas a empresa argumentou na Justiça que essa reestruturação já estava prevista, independentemente da pandemia. No mês seguinte, procurou o sindicato para fazer um acordo de redução de jornada, e a primeira condição do Sinpro foi que não houvesse demissão neste semestre, garantindo estabilidade até novembro e pagamento de salários até janeiro de 2021.

Na avaliação da dirigente sindical, foi “um acordo mais civilizado”, que mudou a postura da instituição de promover demissões em todos os semestres. Ela considera, por sinal, que, se as reestruturações e o corte de postos de trabalho são inexoráveis, ao menos é preciso que o processo se dê de forma paulatina e civilizada.

“Ninguém se sente seguro nas instituições privadas”, afirma professora

Na avaliação de uma docente que trabalha numa das universidades do grupo Laureate e falou ao Informativo Adusp sob a condição de anonimato, não houve espaço para discussão na assembleia com o sindicato: tratava-se apenas de votar sim ou não em relação à proposta que o CEO da Laureate já havia apresentado aos professores.

Os docentes estão em férias desde o último dia 1º/7 até 20/7. O adicional de um terço deve ser pago em dezembro. De 21/7 a 20/8 o contrato de trabalho será suspenso, com o pagamento pelo governo federal do equivalente ao teto do seguro-desemprego e a empresa complementando até o equivalente a 70% do salário líquido do docente. No dia 21/8 o contrato de trabalho é retomado, e as aulas serão reiniciadas no dia 8/9. “O governo pode atrasar o pagamento da sua parte, então corremos o risco de não receber nesse intervalo de agosto”, diz a professora.

“Ninguém atualmente se sente seguro nas instituições, a verdade é essa. O grau de insegurança é muito maior do que normalmente acontece. Quem dá aula nas particulares sempre fica na corda bamba a cada semestre: será que vou ter redução? De quanto? Será que vou ser demitido?”, relata a docente.

A professora prossegue: as IES particulares não tiveram gastos com itens como impressão de provas e reduziram drasticamente suas despesas com telefone, luz, água, limpeza, vigilância etc. “A pandemia criou a ‘mágica’, a descoberta para os mantenedores de que eles podem fazer enorme economia. Podem deixar apenas as aulas práticas no presencial e colocar as teóricas em salas gigantescas no ensino remoto, com alunos de diferentes unidades ou cidades”, diz. “O que realmente vai acontecer é que as instituições já se preparam no sentido de enxugar sua estrutura e manter a lucratividade. Isso ficou muito evidente.”

A docente lamenta que há muitos anos as demissões não ocorrem com base na competência técnica do professor. “Elas vêm de cima para baixo, como se alguém do financeiro ficasse fazendo simulações nas planilhas do Excel para ver quanto geraria de economia com a demissão de A, B ou C. Você vê pessoas altamente qualificadas, com titulação, professores excelentes e dedicados, que são simplesmente desligados. Isso é muito triste”, afirma.

E os demitidos, avalia, terão cada vez mais dificuldade para conseguir recolocação, até porque há uma tendência de oligopolização de grupos econômicos no setor privado da educação. Além da Laureate, operam no Brasil grupos como o Cogna (antiga Kroton, dona das “marcas” Anhanguera e Unopar, uma das instituições que mais investem em EaD no país) e a Estácio, que tem mais de 500 mil alunos em 90 unidades em todos os Estados.

“O sindicato patronal vai combinando as mudanças. Hoje já existe a semana de quatro dias de aula presencial. O argumento é que sobra um dia para os alunos fazerem os trabalhos de grupo ou terem aula em EaD — mas isso também serve para reduzir carga horária dos professores e funcionários e cortar despesas de manutenção”, aponta a docente.

A tendência é que a remuneração caia cada vez mais. Atualmente há instituições que pagam R$ 20,00 a hora-aula, não importando se o docente é especialista, mestre ou doutor. A média em São Paulo é na faixa de R$ 30,00, e raras são aquelas que pagam acima de R$ 50,00, diz a professora.

Todo esse cenário sinaliza desestímulo e contrassensos para a educação brasileira de modo geral, porque a diminuição das contratações nas IES particulares reduz inclusive o campo de trabalho para mestres e doutores formados nas universidades públicas, onde estão 84% dos pós-graduandos do país, de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Privadas demitiram “por precaução”, por não terem “margem de manobra” no 2º semestre

As IES particulares alegam que os números justificam as medidas. De acordo com pesquisa recentemente divulgada pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp, que tem abrangência nacional), as instituições perderam 265 mil alunos — que abandonaram o curso ou trancaram a matrícula — nos meses de abril e maio. A evasão deste ano foi 32% maior na comparação com o mesmo período do ano passado, quando foram registradas 201 mil desistências. Também é motivo de alerta a previsão de que no mínimo 11,3% dos estudantes devem terminar o ano inadimplentes, com ao menos uma mensalidade atrasada — embora soe exagerado tratar o atraso de apenas uma mensalidade como inadimplência.

Rodrigo Capelato, diretor-executivo da entidade, chegou a alegar em entrevista à Folha de S. Paulo que as escolas demitiram por “precaução”: “As instituições queriam esperar o início do segundo semestre para ver quantos novos alunos ingressariam, quantos iriam trancar os cursos. Como não foi possível, elas fizeram demissões em larga escala, demitiram mais por precaução já que depois não teriam margem de manobra”.

As escolas particulares representam 88,2% das IES brasileiras — são 2.238, contra 299 públicas, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2018 do Instituto Nacional  de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), do MEC. Cabem a elas 75,4% das matrículas (6,373 milhões de alunos, contra 2,077 milhões nas IES públicas). Nesse universo, os alegados 265 mil desistentes representam apenas 4,1% dos alunos.

“O ensino superior privado é pautado em cursos de baixo custo para atender a uma população que não tem acesso a universidades públicas, mas que teve aumento de escolaridade. Existe aí um mercado em potencial apto a ingressar no ensino superior.

Durante um bom tempo, o ensino superior privado acabou se beneficiando de políticas estatais como o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para todos (Prouni), mas houve um enxugamento desses programas. Então as instituições aceleraram esse modelo de baixo custo, de qualidade absolutamente discutível — mas isso não importa — e com altas margens de lucro”, ressalta Silvia Barbara, do Sinpro.

O presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Montalvão, disse ao Informativo Adusp que a entidade está em contato com os sindicatos de professores e organizações estudantis locais para discutir a adoção de medidas judiciais contra as demissões. A UNE também apoia dois projetos em tramitação no Congresso Nacional. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) 3.419/2020, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), propõe possibilitar a rematrícula de estudantes inadimplentes nas IES por dois anos após o período emergencial da pandemia.

No Senado, o PL 3.025/2020, do senador Weverton Sousa (PDT-MA), cria o Programa Emergencial de Apoio ao Financiamento de Estudantes do Ensino Superior (PEFies) e estabelece, como contrapartida das IES, a proibição de demissão ou redução de salários de funcionários e professores durante o período de vigência do programa. A UNE está dialogando com o senador para incluir outros pontos na proposta, como a redução das mensalidades.

O Informativo Adusp encaminhou perguntas para a Uninove, o Centro Universitário Sumaré, a Unip e o Semesp sobre a demissão de docentes e o aprofundamento dos investimentos em EaD. Nenhuma das instituições deu retorno.

Grande problema é estabelecer parâmetros por baixo, avalia Rubens Camargo (FE)

Na avaliação do professor Rubens Barbosa de Camargo, docente da Faculdade de Educação (FE) da USP, o modelo de EaD já está instalado no setor privado há um bom tempo, e o que aconteceu com essa situação emergencial é que há dois movimentos, do ponto de vista das intenções de mercado. “De um lado, as grandes empresas que montam plataformas, como Microsoft e Google, estão se aproveitando para dizer que os seus produtos são os melhores no mundo inteiro. Elas vão sair ainda mais fortalecidas dessa situação. O problema continua sendo o fato de que elas recolhem nossos dados e transformam isso em mercadoria”, afirma.

De outra parte, continua, as empresas do ensino superior já tentavam o tempo todo conseguir o menor custo possível em pessoal e terceirizar ao máximo a produção de materiais. “Diminuir o número de professores para poder ganhar em cima de cada matrícula nova é a forma de ampliar o lucro. Agora surgiu uma grande oportunidade de radicalizar esse processo”, define.

Camargo partilha a visão de que o ensino presencial é o que tem melhor qualidade. “Educar, mesmo no ensino superior, não significa só estabelecer relação entre conteúdo, aluno e professor. É uma proposta de estabelecer relações com a realidade, fazer pontes, demonstrar que aquilo que está sendo trabalhado são teorias ou métodos de verificação que de certa maneira você não consegue só com as pessoas lendo e interagindo com o papel ou com a tela. É necessário haver um momento de discussão e de proximidade para tirar dúvidas de uma maneira mais apropriada e levantar questões que muitas vezes surgem na hora da aula. O bonito da aula é que ela tem a ver com o artesanal: aquilo que a pessoa adquiriu de conhecimento, de prática, de postura, de visão de mundo que de certa maneira é revelado na relação com o aluno e que também forma o aluno, que pode discordar da sua leitura de mundo, da sua maneira de interpretar o problema, e encontrar soluções mais interessantes. Nessa interação é que acontece o processo de educar”, considera.

O docente ressalta que o problema que estamos vivendo neste momento, em todos os níveis, “é o de parametrizar por baixo: verificar então qual é o mínimo do mínimo que se precisa trabalhar para que o aluno tenha, pelo menos do ponto de vista do conteúdo, algum conhecimento do assunto”. Acrescenta: “Os parâmetros de qualidade caíram para todos. Na USP também está acontecendo isso. Mas no setor privado, que já tinha esses problemas, imagino que tenham aumentado”.

“Este momento revelou com mais clareza a extrema desigualdade que temos: na saúde, nos transportes, na habitação, nas condições de vida em geral, e na educação também”, aponta Camargo. “O capital é o grande problema. Ele enxerga isso também como oportunidade. Ao invés de ver possibilidades para tentar superar as condições da desigualdade, boa parte desses gestores entende que essa condição é a mais propícia para lançar novos produtos, na perspectiva de conquistar a hegemonia que eles tanto querem. Se a gente naturalizar essa desigualdade, aí estamos perdidos. Será a plena realização desse projeto de mercado.”

“Pandemia veio para acelerar digitalização na educação”, prega Luciano Huck

Senso de oportunidade, por sinal, não falta ao apresentador-empresário (e talvez futuro presidenciável) Luciano Huck, que se associou à Eleva Educação, “um dos mais conceituados grupos de ensinos fundamental e médio do país”, e ao grupo Estácio para criar a plataforma “Resolve Sim”, destinada aos alunos do Rio Grande do Sul que vão se preparar para a próxima edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

O projeto — cujas iniciais, não por acaso, são RS — não terá custo para o governo gaúcho, de acordo com o governador Eduardo Leite (PSDB), que participou de uma live com Huck na última quinta-feira (9/7).

Na conversa, o apresentador-empresário afirmou que “a pandemia veio para acelerar esse processo de digitalização da educação, de você pensar em novos formatos, de você criar novas dinâmicas entre aluno e professor”. “Acho que é o começo de um ciclo que se Deus quiser vai ser virtuoso e que acelere a tão necessária digitalização dessas plataformas de educação”, completou.

De acordo com o Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS-Sindicato), mais de 285 mil estudantes da rede estadual ainda não realizaram o primeiro acesso na plataforma do Google Classroom apresentada pelo governo Leite como solução para a retomada das aulas remotas, no início de junho. O contingente representa 34,7% do alunado. Sobre a live do governador com Huck, o CPERS publicou o seguinte comentário no Twitter: “Crise e morte para uns, oportunidade e lucro para outros (geralmente para quem já tem oportunidade de sobra)”.

Em março, a startup Alicerce, da qual Huck é um dos investidores, demitiu dezenas de professores após o fechamento das suas unidades em três Estados por conta da pandemia. Com a repercussão negativa da notícia, publicada pelo site The Intercept Brasil, o apresentador-empresário anunciou que o “erro” seria corrigido e que nenhum professor ficaria desassistido

 

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