Jornalismo emporcalhado
Artigo de Silvia Barbara
Diretora do SINPRO-SP
silviabarbara@ig.com.br
A Editora Abril e a Fundação Victor Civita mantêm a publicação Veja na Sala de Aula, dirigida a escolas de ensino básico. Nela, são propostas atividades pedagógicas a partir de matérias selecionadas na revista semanal.
Como professora, julgo temerário o uso deste material, não só pelo conteúdo manifestadamente ideológico das reportagens publicadas na Veja, mas principalmente pelos erros conceituais e distorções existentes em parte expressiva das reportagens. Feita esta consideração inicial, entro no assunto principal de meu artigo. Em 11 de fevereiro de 2004, a Revista Veja publicou matéria intitulada “Perua na Lama”. A reportagem versava sobre a ida da então prefeita a bairros atingidos por alagamento em função das chuvas.
Marta entrou com ação contra a revista Veja e – acreditem – perdeu! O título publicado pelo jornal O Estado de São Paulo dá a exata dimensão da sentença: “Para juiz, Marta pode ser chamada de perua” (OESP, 11/05/05). Pode mesmo, Sr. Juiz? Então, qualquer mulher pode ser chamada de “perua”. Ou “galinha”. Ou “vaca”... Sim, porque não há diferença entre estas qualificações, a não ser a conotação sexual sugerida pelos dois últimos xingamentos.
No mais, ambas são expressões depreciativas, desabonadoras e machistas. Caso o juiz Airton Pinheiro de Castro, da 2ª Vara Cível do foro regional de Pinheiros, autor desta inacreditável sentença, tenha dúvida, pode perguntar às mulheres de sua própria família – mãe, esposa, filha - se elas não ficariam ofendidas ao serem chamadas publicamente de “perua”. Aliás, será que este juiz as chama de “peruas”?
A “porteira aberta” pela sentença pode alcançar qualquer ser humano, independentemente do sexo. Imagine um juiz – ou qualquer outro homem – tratado na grande imprensa pelo nome de um vistoso animal freqüentemente associado ao gênero masculino. Nos dois casos, não está em questão a opção sexual ou o modo de vestir de uma pessoa, mas o tratamento desrespeitoso conferido a ela!!
Moral da história: a sentença abriu precedente para que a Veja publicasse novo artigo sobre a gestão de Marta, intitulado “O mensalão da perua” (10/06/05). Será que a Veja na Sala de Aula utilizou este título para discutir preconceito? Machismo? Desrespeito? Falta de educação? Desprezo?
Seria um bom pretexto para mostrar aos alunos que ninguém, nem os jornalistas, têm o direito de tratar pessoas desta maneira. Uma excelente oportunidade para discutir respeito ao ser humano, independentemente do sexo. Não vou entrar no mérito da conotação ideológica e política da matéria, que o Juiz, se fazendo de bobo, quis ignorar. Meus argumentos, propositalmente, estão limitados ao caráter preconceituoso e antijornalístico da reportagem.
Vale lembrar que muitos de nossos alunos são leitores de Veja. Dado o exemplo, jovens e adolescentes passam a achar normal usar de achincalhe para se dirigir às pessoas. O que você faria, então, se durante a aula, uma aluna fosse tratada como “perua” ou “galinha”? Ou se um aluno fosse chamado de “viado”??
Certamente, trata-se de um exemplo quase caricatural, mas que tangencia uma questão ainda mais séria para os professores: o (mau) uso aparentemente “neutro” de reportagens com forte conotação ideológica e distantes do rigor conceitual que deveria ser exigido nas aulas. Mas isso é assunto para um outro artigo ...
Aqui, vale dizer que a Veja só reafirmou o mau jornalismo que produz e - já que estamos falando de bichos – que emporcalha a imprensa. Motivo de sobra para manter esta revista longe das salas de aula.