SinproSP

Preconceito e incapacidade de conviver com os diferentes

Atualizada em 13/09/2004 16:30

Assassinatos em série de moradores de rua em São Paulo chocam o país e levantam a discussão sobre a tolerância

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Golpes certeiros desferidos por um objeto roliço, como um cano ou um pedaço de pau. Essa foi a arma que recentemente matou sete moradores de rua na região central de São Paulo, ferindo ainda outros onze, internados em estado grave. Os motivos da chacina? A resposta é mais do que preocupante. “Remeto as mortes e os ataques aos moradores de rua a um sentimento forte da população paulistana de limpar a cidade”, afirma a socióloga Camila Giorgetti, doutora em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris.

Em sua tese, defendida em abril, a pesquisadora comparou, usando os noticiários dos jornais Folha de S. Paulo e do Le Monde, a população que vive nas ruas paulistanas com a da capital francesa, tentando identificar ainda as relações estabelecidas com a sociedade. “Essas mortes sempre aconteceram. Ou exatamente assim, ou – de vez em quando –, por conta de problemas existentes entre os moradores mesmo”, explica, apontando que há notícias similares em edições da Folha publicadas em 1978, 1983 e 1997, por exemplo. Mas, como se manifestam em intervalos irregulares, e atingem segmentos marginalizados da população, não raro as mortes sequer viram notícia, nem se transformam em indignação social. “O diferente agora é que são assassinatos em série, uma tragédia, e isso parece ser suficiente para acordar a sociedade para o problema”, destaca a doutora em Sociologia.

Trazer à tona o preconceito
A tragédia, como diz Camila, também foi suficiente para remexer e trazer à tona algumas das chagas brasileiras, escondidas com muito esforço: o preconceito e a solução higienista. “Esses moradores foram mortos por pessoas que acreditam que eliminá-los é uma boa maneira de resolver a situação”, afirma a socióloga. Ou seja, temos, na verdade, dois problemas sociais relacionados à situação de rua. O primeiro é a própria condição de abandono das pessoas. O segundo é a postura de discriminação e intolerância, manifestada por parcela significativa da sociedade. Em sua tese, a socióloga entrevistou cerca de 500 paulistanos e 500 parisienses sobre o que achavam dos moradores de rua. Em Paris, coloca-se que a origem do problema é o desemprego e a desestruturação familiar, ou seja, questões estruturais. Em São Paulo, a resposta dominante diz que os mendigos, como são chamados, estão na rua por culpa deles mesmos, por culpa da bebida. “Aqui, não há uma percepção geral que o morador de rua é vítima de um sistema”, analisa Camila. A lógica que se segue é ainda mais cruel: se o culpado é ele, o problema não é nosso, então vamos eliminá-lo, “cortar o mal pela raiz”. E mais uma morte se apresenta como saída. O que pauta a diferença, na opinião de paulistanos e parisienses, em relação a seus moradores de rua é a desigualdade social e a má distribuição de renda, segundo a pesquisadora. Nossa sociedade é bem mais fragmentada que a francesa em termos econômicos, ou seja, há uma maior distância entre os pobres e os ricos brasileiros. Pior: a condição de desigualdade forneceu às classes mais abastadas um olhar preconceituoso em relação aos mais pobres, aponta o estudo. E o preconceito nasce ainda de outras fontes: quanto menos escolarizada a pessoa, maior a dificuldade de entender que morar na rua é um problema estrutural, da sociedade, e não do indivíduo. “Ou seja, tanto a condição de riqueza quanto o menor acesso à educação e à cultura propiciam o surgimento de pessoas higienistas, preconceituosas”, completa a socióloga.

A mesma situação se repete entre os policiais, os médicos, os trabalhadores sociais e os políticos ouvidos pela pesquisa. O caso dos policiais é sintomático. “Dentre todas as categorias, eles são os que apresentam menor formação profissional e, certamente por isso, os que mais refletem essa vontade de limpar a sociedade”, destaca a socióloga. É importante ressaltar o cenário que Camila encontrou quando conversou com essa parcela de entrevistados. No Brasil, o salário dos policiais – e de quase todas as categorias profissionais - é dez vezes menor que o dos franceses. Também a condição de trabalho é totalmente diferente. Enquanto os guardas da capital francesa afirmaram não ter medo, os brasileiros se mostram vulneráveis e assumem que sentem medo sim no exercício profissional. Tudo isso ajuda a explicar a situação de despreparo que marca a atividade dos homens que cuidam de nossa segurança – embora não represente, de forma alguma, justificativa ou respaldo para a posição higienista.

Sensibilidade para entender
A tese, no entanto, também traz notícias boas. Há sim uma parcela da população que não só está preocupada com a situação dos moradores de rua, mas que também tem muito mais sensibilidade para entender os problemas dessa população. “São as pessoas que estão nos níveis mais primários de renda, os mais pobres. Talvez por estarem muito próximos econômica e socialmente, essas pessoas têm uma visão nada preconceituosa”, revela Camila.

E isso é o que torna a história ainda mais complexa. Afinal, trata-se da mesma sociedade: a que mata, a que se comove e a que cobra soluções. Sim, porque, mesmo em meio a tanto preconceito, aumenta a pressão para que os governos municipais, estaduais e federal tomem atitudes para punir os assassinos, e também para que desenvolvam políticas públicas capazes de beneficiar os moradores de rua. Historicamente, os governos têm atuado muito pouco nessa área, destaca a socióloga. Embora a administração de Luiza Erundina (1989 – 1992) tenha feito convênios com instituições religiosas para que acolhessem os moradores e os encaminhassem para o trabalho, a gestão seguinte acabou com esse projeto. O então prefeito, Paulo Maluf (1993 – 1996), não só parou de destinar verbas aos convênios, como determinava a queima das carrocinhas dos moradores de rua, com todos os seus pertences. Camila ainda apurou que o mesmo comportamento se repetiu na Câmara Municipal, durante aquele governo. “Foram propostas leis para expulsar os moradores que viviam debaixo do Minhocão e para colocar descanso para braços nos bancos de lugares públicos, para evitar que dormissem ali”, conta.

A gestão de Celso Pitta (1997 – 2000) não ofereceu nenhuma melhoria à condição da população de rua, e a atual administração, embora esteja longe do ideal, tem mostrado maior sensibilidade. É do governo de Marta Suplicy, por exemplo, a iniciativa do Albergue Boracéia. “Da beleza ao atendimento, passando pelo que oferece aos moradores de rua, ele é único no mundo”, comemora Camila. Lá há, por exemplo, lugar para o albergado deixar seu cachorro – o fiel escudeiro – e a carrocinha – o baú dos tesouros.

Outra iniciativa que já responde às cobranças da população é o Censo Nacional da População de Rua. A proposta foi apresentada recentemente pelo ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, como condição para que políticas sejam adotadas pelo governo federal. A falta de dados sobre esses habitantes no país é apontada como um obstáculo importante para as ações.

Camila acredita que não se pode deixar escapar mais esse momento para começar uma guinada concreta na condição de vida dos moradores de rua. “A imprensa está mobilizada, a sociedade está cobrando soluções, e o poder público sinaliza estar receptivo”, explica a socióloga, esperançosa, ainda que tudo isso tenha começado graças aos ataques higienistas aos moradores de rua.

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