Geral

Sobre universidades, campeonatos e reportagem

Atualizada em 14/09/2012 10:49

Por Sylvia Debossan Moretzsohn*
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa (em 11/09/2012 - edição nº 711)

O caderno especial que a Folha de S.Paulo publicou na segunda-feira (3/9) com “o primeiro ranking de universidades brasileiras” é um raro exemplo de esquizofrenia jornalística. Idealizada pelo próprio jornal e realizada ao longo de oito meses com a intenção de ser uma “iniciativa de avaliação sistemática do ensino superior no país”, a pesquisa traz tantas inconsistências que nem deveria ter sido publicada. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi um caderno intrinsecamente contraditório, que apresentava os índices e a “receita para medir o ensino” ao lado de artigos que reconheciam a fragilidade dos números e a extrema simplificação que eles promoviam.

Para completar, a coluna de domingo (9/9) da ombudsman Suzana Singer destacava: “Ranking universitário criado pela Folha tem problemas graves de metodologia, mas é bom para chacoalhar a academia”. Por que a academia deveria sentir-se chacoalhada com números imprestáveis é desses mistérios para os quais não se imagina uma resposta coerente, embora o ranking – cuja sigla, RUF, “parece latido de cachorro” – tenha provocado “bastante barulho”, com o envio de “mais de 300 mensagens em apenas três dias” à ombudsman.

Porém, é forçoso reconhecer o empenho desse jornal em “chacoalhar a academia” de tempos em tempos. Um dos episódios mais famosos ocorreu há 24 anos: foi o da “lista dos improdutivos da USP”, publicada em fevereiro de 1988, e que provocou respostas incisivas de alguns dos mais brilhantes intelectuais do país. Na época, o jornal divulgava uma relação produzida pela reitoria. Agora, fabrica seus próprios números e expõe uma contradição essencial: se há problemas graves de metodologia, por que o ranking teria credibilidade?

Como a tabela do Brasileirão

Na contracapa do caderno especial, sob a vinheta “Contraponto”, o pesquisador Don F. Westerheijden critica: “Os rankings atuais são como tabelas de campeonato de futebol”. Nesses campeonatos, “as normas dos rankings são rígidas e estáveis (2/1/0 pontos para vitórias/empates/derrotas), mas, nos rankings de universidades, as regras são tão arbitrárias e inconstantes que as instituições mudam de posição sem que tenham feito qualquer alteração real no ensino”.

Mais adiante, aponta o que falta a esse tipo de listagem: “contemplar a diversidade de disciplinas e mostrar a diferença entre ensino e pesquisa/inovação”. E sugere como hipótese viável o U-Multirank, patrocinado pela União Europeia, previsto para estrear em fins do ano que vem, com a proposta de “disponibilizar dados das universidades para que o usuário faça sua análise na dimensão que quiser, no lugar de apresentar uma listagem resultante de um cálculo que atribui pesos aos dados”.

Apesar de ter sido apresentado como tal, o artigo não foi o único “contraponto” à pesquisa. O primeiro, pela ordem da edição, é do articulista Helio Schwartsman. O título, “Só conhecemos aquilo que podemos medir”, associado a “um mantra da física” segundo o qual “sem as amarras da realidade mensurável, a ciência é indistinguível da teologia e do delírio”, já permitiria uma longa discussão a respeito do conhecimento humano, do qual estariam descartadas, desde logo, a arte e a literatura, talvez pertencentes a essa esfera delirante do imensurável.

Números ruins e propaganda

Como aqui não há espaço para essas considerações, fiquemos com os argumentos do articulista, que de saída se equivoca ao dizer que as universidades brasileiras foram “construídas à sombra do sindicalismo de resultados” e que por isso “têm sólido histórico de resistência a avaliações”. Naturalmente, essa tentativa de desqualificação não se refere às universidades em geral, mas às públicas, embora a afirmação não se aplique sequer ao movimento sindical prevalecente nessas instituições.

Sindicalismo de resultados, como se sabe, é antiga expressão de militantes contrários à CUT, que ganharam algum prestígio nos malfadados tempos de Fernando Collor e seu ministro do Trabalho Antonio Rogério Magri, que combatia o sindicalismo “ideológico” sob o argumento de que ideologia não enchia barriga.

Mas é claro que o articulista não desconhece a história de nossas universidades, portanto não poderia supor que resultassem de ações sindicais de qualquer espécie.

À parte esse deslize, Schwartsman relaciona uma série de problemas metodológicos da pesquisa que o jornal divulga, e então retoma a pergunta com a qual abre seu texto: “Por que criar um ranking universitário?”. Responde assim:

“A ciência e o ensino estão se globalizando. É cada vez mais comum ver jovens estudando no estrangeiro. E, se já é difícil escolher uma universidade no país de origem, muito pior é fazê-lo em lugares a respeito dos quais não se tem muita informação. Os rankings, ao traduzir toneladas de dados num número, ajudam esse estudante. Embora a internacionalização seja ainda incipiente no Brasil, devido a mudanças como o Enem, está aumentando a mobilidade interna dos alunos, para os quais o RUF pode ser de grande auxílio. (...) No mais, uma medida da produção universitária, mesmo que imperfeita, é preferível a nenhuma medida.”

Não: números ruins não servem para nada, a não ser para mistificar. Ou – o que dá no mesmo – para serem manipulados para fins de propaganda, como, previsivelmente, ocorreu já no dia seguinte à divulgação do ranking: na terça-feira (4/9), uma instituição ocupava a barra inferior da capa do jornal e uma página interna inteira no primeiro caderno para se anunciar como “a melhor universidade privada do estado de São Paulo”. Na quinta (6), uma concorrente faria o mesmo, e repetiria a dose na segunda-feira (10), dizendo-se “top no mercado de trabalho” de acordo com “os que contratam”, valendo-se do RUF como comprovação.

Apenas um “exercício”

Ainda no caderno que divulgou a listagem, o próprio coordenador do projeto reconhece que o trabalho de “ranquear é novo, escorregadio e metodologicamente vacilante”, e que tais tabelas resultam de “um processo complexo que requer experimentação. Por isso mesmo são chamadas de exercícios” ( ver aqui).

Por que simples exercícios são publicados num jornal e, apesar de incipientes, sustentam manchetes conclusivas é algo que escapa à lógica – ou melhor, só se encaixa na lógica publicitária.

Adiante, o pesquisador se impressiona com o fato de que, “no quesito qualidade de ensino, apenas um quarto das universidades tenha recebido alguma pontuação (40 públicas e nove privadas)”. De fato, entre as 50 primeiras, nove tiraram zero nesse item. Será que o ensino nessas instituições é assim tão indigente ou os especialistas consultados não eram a melhor fonte para informar o que se passa numa sala de aula?

O papel da universidade

No dia seguinte à publicação do ranking, o físico e membro do Conselho Editorial da Folha Rogério Cézar de Cerqueira Leite ampliaria as críticas, que começavam com a questão crucial para qualquer empreitada desse gênero: tentar estabelecer um ranking de universidades exige, antes de mais nada, esclarecer o que se entende por universidade ( ver aqui).

E aqui chegamos ao problema de fundo, já discutido mais de duas décadas atrás, na época dos famosos “improdutivos” da USP. A propósito, valeria a pena resgatar alguns entre vários artigos que a professora Marilena Chaui publicou sobre a “universidade operacional” ( ver aqui), inclusive na própria Folha ( no falecido caderno Mais! de 9/5/1999), depois aprofundado aqui):

“Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. (...) Nela, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência ricos em ilustrações e com duplicata em CD-ROM. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre ela e outras afins – o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários – ou melhor, “flexíveis”. A docência é pensada como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino para novos pesquisadores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação. (...) Passa-se a confundir educação e “reciclagem”, exigida pelas condições do mercado de trabalho. Trata-se de aquisições de técnicas por meio de processos de adestramento e treinamento para saber empregá-las de acordo com as finalidades das empresas.”

Em vez de rankings, reportagem

Bem a propósito, o editorial da edição que anuncia o ranking critica o “dogma” da indissociabilidade entre ensino e pesquisa – da extensão, nem se fala – consagrado pela Constituição de 1988. Pois, afinal, o levantamento da Folha estava aí para demonstrar que universidades voltadas apenas para o ensino teriam um papel a cumprir.

Disso não há qualquer dúvida, como acabamos de ver.

Já a conclusão do editorial – de que “seria útil para o país (...) admitir que prosperem diferentes tipos de universidades” – merece algum reparo. Pois a grande utilidade, aí, é para os empresários desse lucrativo ramo de negócio.

Se o jornal optasse por investir em reportagem sobre a situação do ensino superior no país, em vez de gastar oito meses e o correspondente em cifrões não especificados para estabelecer um ranking cuja precariedade é reconhecida pelos próprios organizadores, seguramente prestaria melhor serviço. Nem tanto aos empregadores, talvez, mas certamente aos estudantes e ao público em geral.

Poderia verificar, por exemplo, como funcionam as instituições privadas na sua disputa alucinada por mais clientes – perdão: alunos –, como essas instituições tratam seu corpo docente, como promovem demissões em massa para a contratação de funcionários mais baratos. Poderia deslocar seus repórteres para verificar, presencialmente, o que tem significado a expansão das universidades públicas, a abertura de cursos sem qualquer estrutura, funcionando em contêineres, com professores insuficientes trabalhando em regime precário.

Finalmente, em vez de criar seu próprio critério de avaliação, poderia dedicar-se a estudar e estimular o debate sobre os critérios já existentes estabelecidos pelo governo. Mas para isso teria de abandonar o pressuposto de que a academia – isto é, a universidade pública – é refratária a avaliações. Pois não é disso que se trata: as inúmeras críticas feitas ao longo das últimas décadas aos critérios de avaliação pretendem demonstrar a enorme dificuldade da adoção de instrumentos adequados para medir a relevância do trabalho intelectual. E, mais ainda, que esses instrumentos não podem ser julgados isoladamente, dissociados do contexto político em que são produzidos: no caso, o modelo de universidade que se quer eleger.

Não há novidade nessas considerações, porém. Como sempre, a prática da reportagem é muito mais eficaz e esclarecedora do que iniciativas de grande potencial publicitário, mas alheias ao papel elementar de qualquer jornal.

*[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]

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