O lado sombrio das atividades a distância
O trabalho em casa faz parte da rotina docente. Quem é professora, quem é professor sabe que as atividades extraclasse despendem muito mais tempo e energia do que a aula em si. Planejamento, projetos, leituras, pesquisas, preparação de aulas, atividades e instrumentos de avaliação são apenas alguns exemplos desse cotidiano.
Não é de hoje que a tecnologia foi incorporada ao trabalho docente. As atividades tornaram-se mais complexas e diversificadas, exigindo uma disponibilidade cada vez maior dos professores, a um custo pessoal muito grande.
Mas a realidade que professoras e professores estão enfrentando agora, durante a quarentena e o necessário período de isolamento social, talvez seja mais assustadora do que muitos pesadelos possam sugerir.
A suspensão das aulas trouxe um elemento inédito, até mesmo nas escolas mais estruturadas. De uma hora pra outra, os recursos passaram a ser usados não mais como atividade conjugada ao ensino presencial, mas para substituí-lo, ainda que em caráter temporário e excepcional.
Gestores imaginaram que bastaria substituir o meio, transportando mecanicamente o que acontece nas salas de aula presenciais para as plataformas digitais e a partir daí usar todas as possibilidades que a tecnologia poderia oferecer. Fácil?
Preparar uma aula para os meios digitais nos cobra um tempo desumano e insuportavelmente doloroso, horas e horas além do previsto em nossos contratos e jornadas. As leituras, os slides, os recursos de apoio, a linguagem, os exemplos, a dinâmica, o ritmo, a sistematização de conceitos – tudo é diferente. Exaustivo. Tem a aula do agrupamento do infantil, do sexto ano, do oitavo, do primeiro do médio, dos mesmos anos em outra escola, conteúdos diferentes. Quando consegue cair na cama, já madrugada, professoras e professores mergulham na tensão da insônia, já pensando que tudo isso irá se repetir no dia seguinte.
No meio desse caminho, tem o coordenador a lembrar que “pessoal, é preciso postar as atividades no Classroom. Já agendaram a aula no Zoom? Mandaram o link para as turmas? O Moodle caiu, não suportou a quantidade de acessos. Não incentivem as reclamações dos alunos, não vamos criar polêmicas, disponibilizem seus e-mails pessoais”.
No whatsapp, a pedido da direção, “apenas para otimizar o trabalho”, foram unilateralmente criados os grupos dos “professores do fundamental 1, do fundamental 2, do infantil, do médio, dos líderes de turmas, da área de Exatas, das Ciências, do segmento de Língua Portuguesa, das reuniões de emergência”.
O celular é um inferno de apitos e telas luminosas que não param de piscar. Atenção, alunos estão bombando as dúvidas lá no Blackboard, querem saber quando devem entregar os exercícios solicitados. É preciso responder com prontidão, sem deixar acumular as perguntas.
Encarar os encontros online é outro momento angustiante, desesperador inclusive para quem tem anos ou até mesmo décadas de experiência na carreira e transita com tranquilidade pelas salas de aula. Tudo, absolutamente tudo, e ao mesmo tempo, tem que ser controlado pelas professoras e professores: a internet que precisa ter bom sinal e não pode cair, as dezenas de imagens que pulam na tela, os áudios dos alunos, as conversas paralelas, o tempo disponibilizado pela plataforma, os chats, os ícones com as mãozinhas levantadas. Quem consegue manter a serenidade e a linha de raciocínio planejada?
E lá vem a coordenadora, que entrou pelo link agendado e deu uma passadinha na nossa aula “só para ajudar no que for preciso” – e que logo em seguida manda mensagem pelo whatsapp lembrando que “olha, mais atenção, foi muita falação e pouca interatividade, precisa ser mais dinâmica, dá para melhorar”. Sem pedir licença, mães e pais de alunas e alunos também resolveram acompanhar as nossas aulas, “só para ver como é que as coisas estão caminhando”. Saímos do computador física e emocionalmente esgotados, como se um caminhão tivesse nos derrubado.
São condições extenuantes de um trabalho “invisível” que foi triplicado após a suspensão das aulas e parece não ter fim. Entretanto, este é apenas um dos problemas.
Há escolas que estão exigindo dos professores aulas gravadas para serem disponibilizadas – acreditem – no YouTube, na conta da escola. E o direito sobre trabalho intelectual? E se algum aluno usar indevidamente a imagem deste professor?
E por que, afinal, o professor precisa se transformar num youtuber? Será que essa opção não atende mais a estratégias de marketing do que a objetivos pedagógicos?
Para que não fiquem ruídos: entendemos a excepcionalidade e a urgência da crise que estamos enfrentando. Somos favoráveis ao isolamento social como medida de saúde pública. Reconhecemos a importância, os significados e as contribuições das tecnologias para o trabalho docente.
Os estudantes e suas famílias têm reconhecido o esforço dos professores, mas é preciso que eles saibam que esse momento também guarda um outro lado, sombrio e marcado por uma rotina desumana, que denuncia a falta de condições de trabalho.
As histórias que foram contadas aqui são todas reais e muito representativas das dificuldades que os professores estão sendo obrigados a enfrentar. É uma situação nova e excepcional para a qual ainda não existem muitas respostas. Mas esses relatos também podem servir como ponto de partida para que professoras e professores, juntos e no seu Sindicato, construam coletivamente alternativas que assegurem condições dignas de trabalho para toda a categoria.
O Sinpro SP está atento e trabalha diuturnamente para buscar a valorização e o respeito que o trabalho docente merece.